“Feliz ano novo”, “Ano novo, vida nova”, são as frases mais ouvidas ou lidas a cada início de ano, em todas as línguas oficiais existentes, sejam faladas ou gestuais e nas que, não sendo oficiais, resistem com um número de falantes residual. 203 países celebram a mudança de ano com feriado, sendo por isso o mais comum e eu, apesar de nunca ficar muito efusivo neste dia, não fico alheio às festividades. Nunca cheguei ao ponto de me ir deitar mais cedo, como se de um dia normal se tratasse, tal como o meu pai fazia.
Este ano optei por celebrar em casa, telecomunicar com os amigos e família, alguns que estão bem longe, nos seus périplos pelo mundo, em lugares onde ainda é possível ser livre do controlo das entidades oficiais e da sociedade, apesar do dia a dia nem sempre ser o mais confortável ou seguro, mas sentem o gosto e têm o prazer de disfrutar de uma maior liberdade de ação e de nem tudo ser tão rígido e previsível.
Os festejos por todo o mundo não foram muito diferentes do que é habitual. Já lá vai o tempo em que o fogo de artificio fazia a diferença e até a nossa ilha da Madeira era conhecida pela quantidade de fogo que fazia estoirar pelos ares. Poucos sítios continuam a fazê-lo, porque há muito que deixou de ser uma novidade e porque as licenças ambientais são muito restritivas. Quando converso com os mais novos sobre isso, mando-os pesquisar nos arquivos digitais, como em quase todos os assuntos que remontam ao tempo em que mundo era mais analógico ou o digital dava os primeiros passos. Aqui por Arruda, este dia da passagem de ano foi igual a tantos outros e será caso para dizer que foi cumprida a tradição de não se fazerem quaisquer festejos públicos ou comunitários.
Este ano apenas gostei de sensoriar1 as celebrações do Cazaquistão, com a partida para a Lua de mais 7 humanos e 3 robots-exploradores, num projeto que tem tido o apoio de 2 astrobiólogos portugueses que desenvolveram um sistema de monitorização de órgãos vitais e produção de medicamentos nas instalações lunares, para poder debelar algumas doenças que surjam durante a estadia na lua, A partida decorreu de forma natural, naquela que é a 56 viagem para o espaço, 21 a partir do Cazaquistão, país que mantem uma das licenças de lançamentos até 2045, num total de 4 países. Cada viagem e permanência na Lua por 6 meses custa 1 milhão de euros é financiada em grande parte por muitos milionários que há anos sonham experimentar viver fora do planeta terra.
As celebrações no Lenistão foram uma novidade porque, pela primeira vez, desde a criação deste território, foram convidadas pessoas de outra zonas do planeta para as festividades da passagem de ano e parte dessa festa foi mostrada ao mundo. Os convidados foram selecionados com base em critérios definidos e votados por toda a população e com a obrigação de permanecerem no território durante uma semana, por forma a desenvolverem projetos nas áreas aeroespaciais, da energia e alimentação. Este território está e vive isolado do mundo mais desenvolvido por razões estratégicas, de segurança e todas as alterações feitas nos sistemas de gestão das infraestruturas são monitorizadas por alguns dos melhores peritos mundiais.
O Lenistão é um território autónomo, de 6 mil km2, situado entre a fronteira da Somália e da Etiópia, cedido, por um número secreto de dinheiro, pela Somália ao milionário Thomas More em 2029, com constituição e leis próprias e que tem como hino e principal fonte de inspiração a canção de John Lennon “imagine”, lancada em 1971. O acordo com esses países será mantido enquanto não existir violência entre os seus habitantes e para alem da morte de Thomas More, que este ano completa 93 anos. Em dezembro de 2030, 356233 pessoas tinham direito de residência no Lenistão. Desde então, esse título foi conferido a mais 10343 pessoas e cada uma pagou cerca de 2 milhões de euros para poder viver neste território e a licença pode ser herdada ou vendida a terceiros, embora só se possam aceitar pessoas saudáveis, com reputação aferida pelos sistemas de segurança criados. Do pouco que se sabe sobre este território, até hoje não aconteceu qualquer homicídio, a esperança média de vida ultrapassa os 110 anos, 40% da população tem menos de 20 anos, a média de filhos por mulher é 2,4% e apenas 13 pessoas foram expulsas do território, por não terem permitido ou respondido a todas informações solicitadas no âmbito das leis de fiscalização das atividades pessoais exercidas fora do território. Estão pendentes 453 processos de atribuição de licença de residência.
Por cá, na Praça do Comércio em Lisboa a festa foi, à semelhança de outros anos, uma mistura de humanos, robots, lumodrones2 e 3D personas, com música cerebral3 e projeções com a história da cidade e do país. A praça estava quase cheia com 31423 pessoas e os efeitos da coreografia de humanos foi excelente. Apesar do frio, 4º C, as pessoas mantiveram-se cheias de energia e a animação durou até perto das 4h, limite horário estipulado para todas as festas no nosso país, inclusivamente neste dia tão especial.
Uma praça reconstruída há quase 300 anos e que continua a ser o centro político e cívico do país, mesmo depois das novas funções que foram criadas há 7 anos. Outrora um espaço era a casa do poder político centralista tornou-se, através de referendo nacional, num espaço de poder mais democrático e transparente. Hoje é possível, a cidadãos e grupos de cidadãos ou comunidades apresentar presencialmente, discutir e decidir formalmente sobre os regulamentos, projetos-lei e os seus algoritmos, sejam nacionais ou da Federação Europeia. Há muito que todo este processo podia ser feito a partir de casa, mas foi decidido, e bem, que seria necessária a presença de quem foi eleito ou de quem propôs alterações sobre as leis ou algoritmos. Foi a forma encontrada para manter algum caracter humano na discussão e na tomada de decisão que se baseia, na grande maioria dos casos, em informação e conhecimento, produzida a partir de dados recolhidos por muitos sistemas públicos nacionais e europeus. De igual modo, desta forma pretende-se reduzir ao máximo a possibilidade de que sejam tomadas decisões baseadas no achismo, que foi a norma durante décadas. Em muitos casos, era normal que tal acontecesse uma vez que era muito difícil ter dados fiáveis ou, existindo dados, não era fácil compilá-los com os meios e recursos existentes. Na altura dizia-se que os dados eram o novo petroleo: “A diferença é que o petróleo vai acabar um dia. Os dados, não”. A meio da década 10 deste século dizia-se que “nos últimos dois anos foram produzidos mais dados que em toda a história da humanidade”. No início dos anos 20 quando os sistemas começaram a ser mais fiáveis, pouco a pouco, foram os cidadãos que começaram a exigir que toda a atividade política fosse controlada, participada e mensurada na conceção, discussão e execução. Já ninguém se lembra, mas dos primeiros sistemas que foram algo de análise mais profunda foi o ranking das escolas. Na altura, os pais e autarquias começaram a exigir ter uma voz ativa na definição de critérios de avaliação e na atribuição de fundos e apoio para as escolas, para que pudessem escolher as escolas de acordo com o projeto, ideia e até sonhos que cada uma tinha. Não foi um processo nem discussão pública fácil porque em muitos casos as piores escolas, ou que ficavam mais mal classificadas, ficavam a falar sozinhas. Pouco tempo depois perceberam que o sistema ajudava a mostrar que eram as piores por razões que não tinha nada a ver com os professores, nem o esforço e dedicação que tinham e graças a isso foi possível inverter a sua posição. Na altura, o Ministério da Educação começou a trabalhar em algoritmos que dessem resposta aos principais problemas e dúvidas, com total transparência e da forma mais democrática possível, uma vez que se permitiu a vários participantes darem a sua opinião e coube ao parlamento votar o algoritmo que definia as verbas a atribuir, naquele que foi o primeiro algoritmo-lei a ser votado pelo parlamento português e o quarto na Federação Europeia.
Há cerca de 5 anos foi construído um muro de 1 metro de altura ao longo da zona ribeirinha da cidade, para minimizar as marés vivas e a subida das águas vindas do Oceano, já que do Tejo o caudal é há muito fraco. Destoam a paisagem, mas os jardins e os pássaros dão um ar colorido à praça como nunca teve. Apesar de já não haver estações do ano como em tempos idos, as cores das plantas e árvores vão mudando ao longo do ano, no que mais de natural e belo existe e ainda resiste.
As zonas costeiras no norte de Portugal não tiveram a mesma sorte. Foram abandonadas face as constantes invasões do mar e por essa razão tornou-se insustentável manter algumas dessas zonas. A proposta do Parlamento teve uma votação nacional quase inânime. Apoie-se a mudança e deixe-se de pagar para manter praias, casas e estruturas sistematicamente destruídas pelo mar. Praias conhecidas e que eram uma referência são apenas memórias, situação que se começou a falar e começou a ser motivo de preocupação nos anos 20 face às previsões que já existiam sobre a subida das águas.
Uma caminhada matinal por Arruda mostra a vila quase vazia, mas a culpa deve ser do nevoeiro e do frio que tem sido uma constante nos últimos dias. O digitego diz que estão 3 graus e, apesar de todo o conforto do vestuário e do calçado, o frio ainda continua a condicionar psicologicamente muitas pessoas. Alguns veículos autónomos circulam na variante com foliões adormecidos da passagem de ano, vindos sabe-se lá de onde.
É sempre um prazer caminhar pelo Parque das Rotas em qualquer altura do ano. Apesar do frio, ouvem-se pássaros a cantar, como se no seu calendário também tenha havido mudança de ano. As árvores têm 20 anos de vida e estão despidas pela época do ano, encolhidas por causa do frio e pela crónica falta de água. Os carvalhos, castanheiros e freixos plantados de ambos os lados do frio fazem as delícias de todos os pássaros na primavera